sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Código Florestal e a corrida pela terra

Por André Antunes*

Para ambientalistas, flexibilização do Código foi primeira etapa de um processo de desmonte da legislação ambiental brasileira, que deve mobilizar ruralistas pelos próximos 20 anos.

A novela da votação do Código Florestal, pelo menos por enquanto, chegou ao fim. Por mais simplista que pareça, a analogia não é gratuita: assim como os folhetins televisivos, o processo de elaboração do novo Código foi repleto de idas e vindas, polêmicas e momentos dramáticos, mobilizando setores consideráveis da população. O ‘capítulo’ mais recente teve como protagonista a presidente Dilma Rousseff, que no dia 17 de outubro anunciou a decisão de vetar nove itens do Projeto de Lei de Conversão 21/2012, que nasceu das alterações feitas pela comissão mista do Congresso Nacional encarregada de analisar a medida provisória 571/12. Esta, por sua vez, foi emitida em maio pelo Executivo para ‘tapar os buracos’ deixados pelos 12 vetos iniciais de Dilma ao texto da lei do novo Código Florestal que havia sido aprovada pelo Legislativo um mês antes.
Logo após o anúncio dos vetos, o Executivo emitiu um decreto transformando em lei grande parte das alterações anteriormente propostas pela presidente ao texto do novo Código. E ao que tudo indica, essa historia ainda vai dar pano pra manga: em nota à imprensa divulgada após os vetos, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – representante da bancada ruralista – chamou a atitude da presidente de “desrespeito” e afirmou que a FPA estuda a “possibilidade de recorrer a instrumentos outros pela valorização do Poder Legislativo”. À Agência Brasil, o deputado Ronaldo Caiado, vice-líder do DEM na Câmara, afirmou que pretende entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando o decreto.
Resumo da ópera: o Brasil tem hoje um novo Código Florestal que desagrada a ambientalistas, movimentos sociais e setores da academia, mesmo com os novos vetos de Dilma ao texto da lei, que para muitos não fizeram mais do que evitar que uma lei já bastante problemática ficasse ainda pior. Se você vem acompanhando a cobertura da revista Poli e do site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) sobre o processo de elaboração do novo Código, sabe os motivos dessa insatisfação.
Por isso, o foco desta matéria não será discutir os pormenores da queda de braço entre Legislativo e Executivo que permeou boa parte do processo de elaboração e votação do Código Florestal agora em vigor. Daremos ênfase ao que pode estar por trás desse esforço que culminou com a flexibilização da principal lei florestal brasileira e ao que está por vir nos próximos anos, uma vez que, para ambientalistas ouvidos pela Poli, a flexibilização do Código Florestal foi apenas o primeiro passo de um processo com implicações mais profundas, inclusive para a saúde pública: o desmonte da legislação ambiental brasileira, vista por setores ligados ao agronegócio, à indústria e à construção civil como entrave ao desenvolvimento.

Anistia
É essa a análise de Sérgio Leitão, diretor de políticas públicas do Greenpeace, que explica que o Código Florestal anterior, de 1965, nunca foi implementado efetivamente, permitindo, por exemplo, que grandes áreas de vegetação fossem desmatadas ilegalmente ao longo do tempo. Segundo ele, com a emergência da questão ambiental no Brasil, a partir dos anos 1980 e principalmente a partir da Rio 92, quando a discussão sobre mudanças climáticas ganhou força, a sociedade passou a demandar do Estado que aplicasse a lei. “Quando isso acontece, o setor do agronegócio começa a se incomodar e passa a fazer o que todo setor forte economicamente no Brasil faz quando recebe uma cobrança: em vez de ‘pagar a conta’ e passar a respeitar a lei, ele vai mudar a lei para que possa se livrar do problema. É isso o que o setor vem fazendo”, afirma Sergio. Com o novo Código, diz ele, foram diminuídas as exigências de recomposição e preservação de áreas desmatadas nas chamadas Reservas Legais (RL) e Áreas de Preservação Permanente (APP), e essa era a principal reivindicação dos ruralistas ao proporem a revisão da lei. “Eles foram espalhando modificações ao longo do texto para diminuir esse passivo e em alguns casos eliminá-lo. Essa anistia está nos vários artigos que falam, por exemplo, que quem desmatou até 2008 não está obrigado a recuperar tal e qual a legislação exigia”, diz. André Lima, assessor jurídico da organização não-governamental SOS Mata Atlântica, dá um exemplo que facilita a visualização da anistia que foi dada aos produtores rurais.
“Quem desmatou, até 2008, margens de rios com mais de 200 metros de largura vai ser obrigado a recompor, na melhor das hipóteses, só 100 metros de vegetação, sendo que o código anterior exigia até 500 metros. Aí tem quem diga que não é anistia porque obriga a recuperar 20%, mas trata-se de uma anistia de 80%”, aponta, completando: “Mais de 75% dos produtores rurais são pequenos proprietários e, por isso, não vão precisar recuperar mais nada. Qual é a diferença, por exemplo, de uma nascente em uma pequena propriedade e em uma grande propriedade? Ambas têm uma função ecológica e ambiental altamente relevante. O que o governo deveria fazer era oferecer instrumentos e incentivos para que essa recuperação pudesse acontecer de fato e sem muito ônus para o pequeno produtor, em vez de simplesmente anistiar”, reclama.
Para Sérgio Leitão, com a diminuição da área de vegetação a ser recomposta pelos proprietários rurais, materializada no novo Código Florestal, os ruralistas agora deverão iniciar uma nova rodada de ataques à legislação ambiental. “O Brasil está se consolidando como grande produtor de alimentos e tem uma demanda mundial para ampliação da oferta de grãos, em função da emergência econômica de países populosos, principalmente a Índia e a China. Para os ruralistas, o Brasil tem que se colocar como o país que vai suprir essa demanda. Isso significa que o país precisa aumentar sua área plantada e sua produtividade. Nesse contexto, quem tem terra agricultável tem ouro na mão. Por isso o setor do agronegócio já começa a criar ambiência àquela percepção de que as leis que sobreviveram restringem a expansão da agricultura”, avalia.

Cortina de fumaça
Para o diretor de políticas públicas do Greenpeace, os argumentos usados pelos ruralistas para justificar a flexibilização das leis ambientais servem como uma cortina de fumaça sobre o que é pura e simplesmente uma corrida do grande capital para acumular mais patrimônio fundiário. Mesmo porque, segundo Sérgio Leitão, pesquisa conduzida na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq / USP) apontou que existem atualmente 61 milhões de hectares de terras subutilizadas no país. “Trinta e um milhões de hectares são pastagens, com um boi num espaço onde caberiam 30, e o restante são terras que foram utilizadas em algum momento, mas que estão ociosas atualmente. Essas terras já resolveriam o problema da expansão de áreas de produção”, explica. O argumento da necessidade de expansão da produção, completa, esconde uma disputa para ocupar terras que estão hoje fora do circuito comercial. “Hoje no Brasil a atividade de compra de terras está vinculada a grandes grupos financeiros e fundos de investimento com dinheiro sobrando. Se você quiser investir na Europa e nos Estados Unidos, a taxa de retorno hoje é nenhuma, porque os juros foram baixados para que as economias tenham alguma forma de reaquecimento, então tudo se volta para ativos fixos, como a terra, que passou a ser um artigo muito valorizado”.

Demandas ruralistas
Uma consulta à pauta de reivindicações da FPA, no site da entidade, dá uma ideia do que está por vir. Uma das demandas, inclusive, diz respeito a uma questão cara à saúde pública – e que tem sido acompanhada de perto pela Fiocruz: a revisão da legislação para o registro de agrotóxicos. “A bancada ruralista no Congresso quer eliminar as restrições que se fazem ao pleno uso dos agrotóxicos no Brasil, reclamando que isso lhe cria limitações. Então tudo aquilo que envolve práticas regulatórias para estabelecer controles ao uso de agrotóxicos no Brasil está sendo duramente criticado”, diz Sergio Leitão.
A FPA também propõe revisar a legislação brasileira referente à demarcação das terras indígenas. Segundo André Lima, no dia 10 de outubro a bancada se reuniu com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, para tratar do assunto. “A bancada está demandando a limitação do direito dos indígenas pela demarcação de suas terras e a revisão de algumas terras, inclusive. Esse é mais um elemento da estratégia de aumentar o volume de áreas disponíveis e um fator de limitação de terras indígenas”, situa. Segundo ele, recentemente os ruralistas tiveram uma vitória nessa área, com a publicação, em julho, da portaria 303 pela Advocacia Geral da União (AGU). “Ela determinou, por exemplo, que não há necessidade de ouvir os povos indígenas em relação ao impacto de obras de infraestrutura, ferindo totalmente a convenção 169 da OIT, que trata do consentimento prévio e informado dos povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário”.
E as reivindicações não acabam por aí, segundo Sérgio Leitão. Outro item importante na pauta dos ruralistas é a revisão da legislação brasileira que restringe a venda de terras para estrangeiros. “Será que se você tem uma empresa estrangeira comprando terra no Brasil e ao mesmo tempo sendo controladora da produção ela vai produzir o que interessa ao país ou o que interessa para quem controla seu capital?”, indaga.

Como evitar o desmonte?
Como então frear esse desmonte da legislação? Para André Lima, o contraponto a esse movimento passa pela construção de estratégias de comunicação com a sociedade e de formação de alianças entre entidades ambientalistas, academia e poder público. “O desafio que se coloca pela frente não é pequeno, e temos que ampliar o arco de alianças em torno da discussão do marco que regulamenta o desenvolvimento no Brasil. O setor econômico está dominando na política e nas instâncias de debate sobre políticas públicas. Precisamos nos organizar melhor, nos unir aos movimentos sociais e às universidades que estão produzindo ciência sobre elementos da legislação ambiental”, avalia. Sérgio Leitão completa: “Acho que o trabalho agora é de reconceituar, narrar esse processo, fazer as pessoas entenderem toda a discussão para, a partir disso, pedir que elas possam ajudar numa intervenção que vise frear esse processo de desmonte e criar condições para recuperar essas mudanças que foram tão negativas”.

*da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

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