Procuradores da República do Mato Grosso e do Pará estiveram semana passada na Terra Indígena Kayabi, na divisa entre os dois estados, a convite dos índios Kayabi e Munduruku, para debater os projetos de usinas hidrelétricas que afetam suas terras. Em outubro, essas mesmas etnias fizeram reféns sete funcionários da Funai e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que faziam estudos sobre as hidrelétricas.
O governo federal planeja seis barragens para o Teles Pires,
que juntamente como o Juruena, forma o rio Tapajós. Para a bacia toda, que
inclui ainda os rios Jamanxim e Apiacás, o plano é fazer um total de 16
barragens, o que vai impactar de maneira decisiva mais de 10 mil indígenas que
vivem as margens desses rios e dependem dele para sobreviver.
Inconformados com os projetos e com a velocidade dos
acontecimentos – as usinas Teles Pires, Colíder e Sinop já estão em execução,
sem estudos indígenas concluídos – os índios convidaram os procuradores da
República que atuam no Mato Grosso e no Pará para uma visita à aldeia
Kururuzinho, onde denunciaram a forma como o governo conduz os empreendimentos
e o abandono que as comunidades enfrentam. O MPF já iniciou duas ações civis
públicas na Justiça Federal contra as usinas Teles Pires e São Manoel e
acompanham o andamento das outras.
A principal queixa dos índios é a ausência de consulta sobre
os empreendimentos. “Pra quê todos os governos do mundo assinaram a Convenção
169?”, questionou Jairo Munduruku, referindo-se à convenção internacional da
qual o Brasil é signatário, que obriga consulta aos povos indígenas para
projetos de infraestrutura que afetem suas terras.
“Se o governo tá desrespeitando a lei, a Constituição, a
Convenção 169, tá desrespeitando também todos os caciques. E pra nós isso é
questão de vida ou morte, porque a água é a nossa vida”, discursou. “Enquanto
tiver cacique e tiver a Constituição, vamos lutar contra essas barragens”,
finalizou.
Cidade dos antepassados - Além da perda dos peixes e da
navegação, bases da vida indígena, uma das questões mais graves para os índios
é a destruição de três locais sagrados de suas crenças no rio Teles Pires: o
Morro do Jabuti, o dos Macacos e um conjunto de cachoeiras conhecidas como Sete
Quedas. Eles acreditam, segundo a tradição, que nesses locais vivem os
antepassados mortos e que, se eles permitirem a violação, grandes tragédias se
abaterão sobre a região. “Vai acontecer muita coisa ruim com branco e com
índio, nós avisamos, mas branco é teimoso”, disse Walmar Munduruku.
“O branco tem seu patrimônio cultural dentro da cidade, o
patrimônio cultural dos índios é nos campos, no mato, nas cachoeiras, no rio”,
explicou Walmar. “As coisas aqui são sagradas, que nossos avós e Deus deixaram
pra nós. Nas Sete Quedas onde estão os maiores peixes do mundo é onde mora
também a Mãe dos Peixes”, relatou José Emiliano Munduruku.
Ele explicou a crença deles sobre o local: “é por isso que
os peixes vêm todo ano, para visitar as sete cachoeiras onde vive a mãe deles.
Não pode mexer lá, se a gente deixar mexer, vai levar muita gente junto, porque
embaixo das cachoeiras tem uma cidade que não é dos brancos, é dos índios. É a
cidade para onde vão todos os índios mortos”, contou.
A importância religiosa e mitológica que os índios atribuem
ao local coincide com a importância ecológica: nas sete cachoeiras
enfileiradas, de fato, ocorre a desova de algumas espécies de peixes da região,
como pacu, pirarara, matrinchã, pintado e piraíba, que chegam a medir até 2
metros.
Apesar dos apelos e temores dos índios, as cachoeiras de Sete
Quedas no rio Teles Pires podem ser destruídas a qualquer momento, porque o
Consórcio Construtor da Usina Teles Pires já começou a fazer explosões nessa
área do rio, mesmo com a usina sendo questionada pelo Tribunal de Contas da
União e por ação judicial do MPF. Entre as irregularidades apontadas, ainda não
julgadas pela Justiça Federal de Belém, consta a falha dos estudos em apontar
todos os impactos.
No caso dos impactos sobre a reprodução e sobrevivência das
espécies de peixes há sérios problemas nos estudos ictiológicos, que não
chegaram a fazer observação em campo e foram considerados insuficientes pelo
próprio Ibama.
No caso do patrimônio cultural indígena relacionado aos
acidentes geográficos do Teles Pires, o problema é ainda mais grave. O governo
brasileiro não se preocupou em identificar e estudar a importância cosmológica,
mitológica e religiosa do rio, desrespeitando o direito dos índios à própria
identidade cultural.
Elenildo Kayabi acrescentou seu espanto com a rapidez dos
projetos. “Eles estão atropelando a gente, quando começamos a entender a usina
de Teles Pires, eles já vieram com a usina de São Manoel”, disse. E ironiza as
soluções da engenharia para os problemas que as usinas vão causar: “falam pra
gente que o peixe vai subir normalmente, que eles vão fazer elevador, a gente
até faz piada com isso: se tem gente que se perde em elevador lá em Brasília,
imagine os peixes aqui”.
“O governo e a Funai nunca vieram aqui falar sobre
demarcação, saúde, educação. Só vêm aqui falar sobre barragem”, se admirou
Floriano Munduruku. “A gente acredita que um dia vai ter um limite, branco vai
parar, estudar outra forma de energia para deixar a gente em paz. Nossa vida
era muito fácil, agora vai ficar muito difícil”, disse.
A revolta dos índios chegou ao ponto de, em outubro, fazerem
reféns os sete funcionários que foram à aldeia Kururuzinho para falar de
barragens. Os reféns chegaram a ser ameaçados de morte e foi construída uma
gaiola no centro da aldeia para prendê-los se o governo não paralisasse o
projeto da usina. A gaiola ainda está lá, como uma lembrança da revolta dos
índios.
Sinais contraditórios - Depois que libertaram os reféns, com
a presença do exército e da Polícia Federal, os Kayabi e os Munduruku foram
levados para uma reunião em Brasília com representantes dos Ministérios das
Minas e Energia, Meio Ambiente e Justiça. Eles exigiram a paralisação do
processo de licenciamento das usinas, mas até hoje não receberam nenhum
documento sobre a reunião.
Sinais contraditórios são emitidos de Brasília sobre a Usina
de São Manoel, o estopim da revolta, projeto que estava previsto para entrar no
próximo leilão de energia, e que incide diretamente sobre a Terra Kayabi. Para
libertar os reféns, o governo prometeu adiar as audiências públicas, mas
publicou o edital delas no Diário Oficial e recorreu contra a liminar do MPF
que garantia o adiamento.
Depois de nova carta dos índios acusando o governo de
traição, o Ibama voltou atrás e comunicou que as audiências estavam realmente
adiadas. Elas não ocorreram no última dia 25 de novembro, como anteriormente
previsto.
Mas, no dia 21 de novembro, no balanço do PAC apresentado
pela ministra do Planejamento Miriam Belchior, a usina de São Manoel aparece
como pronta para receber licença prévia até 30 de janeiro de 2012. E ainda não
foi retirada do edital do leilão do próximo dia 20 de dezembro, que está no
site da Agência Nacional de Energia Elétrica.
“Concordamos com os índios que a rapidez e o atropelamento
do processo são assustadores”, diz o procurador Felício Pontes Jr., que
acompanha o caso a partir de Belém. “Como o governo anuncia a data para uma
usina receber licença prévia sem ter feito consulta ou sequer concluído os
estudos dos impactos aos índios?”, pergunta a procuradora da República Márcia
Zollinger, que atua em Mato Grosso.
Além das UHE São Manoel e Teles Pires, afetando diretamente
as Terras Munduruku, Apiacá e Kayabi o governo projeta as usinas de Foz do
Apiacás, Colíder e Teles Pires. Para nenhuma delas até agora foi feita consulta
aos índios ou concluídos estudos de impacto sobre a vida deles.
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